A fala de Philip Roth

Caso único na obra do autor americano, o romance Quando Ela Era Boa traz uma mulher como protagonista, numa história que ajudou a construir a fama de misógino do escritor

Quando, em 22 de maio deste ano, Philip Roth morreu, duas questões em torno da sua obra voltaram ao noticiário. A primeira dizia respeito ao fato de o escritor ter sido ignorado pela academia sueca em seus 50 anos de carreira, quase 30 romances publicados e inúmeros prêmios, tornando-se (mais um) caso de injustiça do Nobel de Literatura. A segunda questão encerrava uma pergunta: o ex-maior autor americano vivo não passava de um misógino, por conta dos paupérrimos personagens femininos representados em sua obra?

A contestação não vem de agora. Desde 1969, quando lançou O Complexo de Portnoy, Roth criou uma galeria de personagens masculinos que, é sabido, nasciam de sua própria biografia e obsessões. Do próprio Portnoy aos recorrentes David Kepesh e Nathan Zuckerman, são ou priápicos jovens judeus ou (já não tão) priápicos velhos judeus, saídos de famílias urbanas modestas, com mães castradoras, desorientados nas respectivas questões afetivas e batendo-se em um país afundado em puritanismo e tentações autoritárias.

Mas há um ponto fora da curva nessa trajetória, e ele antecede ao “lugar do falo” inaugurado com O Complexo de Portnoy. Então jovem escritor promissor, com os contos de Adeus, Columbus (1959) dando um dinheirinho, e as críticas negativas a Letting Go (1962), dor de cabeça, Roth lançou em 1967 o único dos seus romances protagonizado por uma mulher, Quando Ela Era Boa, livro que, com mais de meio século de atraso, é publicado no Brasil. Pra quem não conhecia, ela coloca mais lenha na fogueira da discussão do Roth chauvinista ou não.

Chama-se Lucy Nelson, e trata-se de uma garota do Meio-Oeste americano nos anos 40. Comparado com O Complexo de PortnoyQuando Ela Era Boa é um romance mais ortodoxamente realista, tecnicamente dosado nos avanços e recuos de tempos e perfeito na mescla de descrições vívidas da província e estados da alma conflituosos. Uma combinação que, para quem gosta, substitui com folga o suspense de uma narrativa que — ficamos sabendo desde o início, não é segredo — vai acabar mal.

Lucy cresce na casa dos avós na fictícia Liberty Center, onde também vivem o pai, inepto e alcoólatra, e a mãe, mulher submissa e sem controle da própria vida. Certo dia, a menina Lucy chama a polícia quando o pai, bêbado, agride a mãe. Um episódio decisivo na história da menina e embaraçoso para a família, especialmente para o avô, Willard, chefe dos Correios da cidade, que a recrimina duramente. Maria da Penha que nada, roupa suja se lava em casa.

Lucy nunca vai se livrar do gesto, e sua atribulada vida adulta nunca escapará da sombra do pai. Ela se projetará em outros homens — em Roy, o imaturo veterano de guerra com quem ela casará a contragosto; no médico do campus que se recusa a fazer um aborto para que ela pudesse continuar na universidade; no tio do marido, Julian, um republicano racista, assediador e infiel. Na psicologia de Lucy, os episódios de abuso, reais, e as fantasias hiperbólicas se fundem numa única realidade.

“Sim, adeus, adeus, homens fortes e corajosos. Adeus, protetores e defensores, heróis e salvadores (…) Adeus, adeus, mulherengos e enganadores, covardes e fracotes, trapaceiros e mentirosos. Pais e maridos, adeus!” À altura destas palavras, Lucy já terá afundado em ressentimento e mágoa, tornando-se cada vez mais raivosa e intratável. “Louca”, “histérica”, alguém no romance observa, e o leitor há de concordar. Em silêncio.

Na biografia Roth Libertado, Claudia Roth Pierpont diz que a relação de Roth com as feministas começa a azedar aí. Ou melhor: os ataques posteriores à sua suposta misoginia terão escavado esse temperamento de Lucy em seu favor — muito embora, Pierpont também observa, mulheres que resenharam o livro à época, como Doris Grumbach e Maureen Howard, terem achado a personagem perfeitamente verossímil.

FATOS DA VIDA REAL

Mas há quem tenha acusado Roth de ter tratado Lucy “sem compaixão” — uma reprimenda que migra a questão da literatura para a moral. Especialmente quando se sabe que Lucy foi inspirada em Margaret Martison Williams, com quem Roth se casou em 1959 depois que ela falsificou um exame de urina para se dizer grávida e embolsou o dinheiro para o aborto. Ela mesma confessou as mentiras depois de uma tentativa de suicídio. Separados, ela infernizou a sua vida, a ponto de Roth dizer que a intenção dela era destruí-lo.

Como Lucy, Maggie vinha daquelas províncias sufocantes, de famílias hipermoralistas, castigadas pela Depressão dos anos 30 e embebidas em mesquinharia. Pertencia a um mundo sem nenhum judeu, habitado por presbiterianos ou católicos com humor zero — exatamente o que define Quando Ela Era Boa e o que o distancia dos marcos de sua obra posterior. “Sem dúvida ela foi minha maior inimiga na vida”, escreveu Roth em sua autobiografia, Os Fatos. “Mas, cumpre dizer, nada menos que a melhor professora de escrita criativa que tive, uma especialista da estética dos atos extremos”.

Egoísmo, hostilidade, vingança? Se o campo da discussão é moral, toda percepção é permitida. Mas, atendo-se ao campo literário, Quando Ela Era Boa é o resultado de uma espécie de exorcismo pela fala — algo que aproxima o romance do universo psicanalítico de O Complexo de Portnoy. Custoso, o livro levou cinco anos — entre 1962 e 1967 — para ser finalizado, e quem o lê percebe claramente a raiva latente do autor por trás da narrativa. Mas é preciso ser muito míope para não enxergar que o objetivo final é livrar-se dessa mesma raiva, não alimentá-la.

Com honestidade, Roth não subtrai de sua protagonista nenhuma das razões que resultaram na revolta de Lucy. Além do próprio Roth, não faltou quem viu nela uma “feminista incipiente, mas fracassada” — a expressão é da autora, feminista, Karen Stabiner. Outras tomaram Lucy como uma espécie de Emma Bovary do pós-guerra americano, numa luta trágica com a estreiteza de seu tempo.

É uma abordagem mais justa, mais afinada com a própria obra de Roth. Tão justa quanto seria ele ter levado aquele bendito Nobel de Literatura.

Bravo!, agosto de 2018
© Almir de Freitas