Uma revolução solar

Histórias que se passam no intervalo de apenas um dia nos lembram que existem muitas outras possibilidades para as narrativas além do real-naturalismo em tempos previsíveis

É o tempo que assenta as fundações de todas as narrativas, de todo exercício ancestral de imaginação que é contar histórias. Desde o “no princípio Deus criou o céu e a terra”, passando para o “conta-se que havia um rei chamado Sahriyar”, até o “muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai levou-o a conhecer o gelo”. O que diferencia cada história – GênesisAs Mil e uma NoitesCem Anos de Solidão e todo o resto – é o modo de transmiti-las. E muitas dessas diferenças se dão no ritmo que ordena, justamente, esse tempo que abarca toda narrativa.

E cada época parece reivindicar seu compasso e andamento, a maneira de tecer a trama que se segue ao “era uma vez”. Hoje, após tantas vanguardas, movimentos literários e decretos de morte, o universo herdado do romance do século 19 ainda resiste como default, especialmente nas formas mais populares de consumo. Esta, outra história já contada: a do folhetim publicado em episódios na imprensa, depois em variações nas rádio, foto e telenovelas, depois nas novas séries de TV convencional e de serviços de streaming. Sem falar, claro, dos livros e filmes.

Com linguagens distintas, impõe-se um tempo que se alonga na engenharia do enredo, na visualização dos ambientes, na construção das personagens em suas vidas comuns. Quem se distrai, acaba não se dando conta de que nem sempre é assim, e que o real-naturalismo que abastece a máquina de histórias do mundo contemporâneo é apenas um dos combustíveis de uma tradição que ainda pode nos dar lições sobre o futuro das narrativas que queremos inventar.

Nem sempre é assim, nem sempre foi. Em sua Poética – “a mais recuada e duradoura matriz da literatura” na expressão do crítico Benedito Nunes – Aristóteles observava que, enquanto a ação de epopeias gregas como Ilíada e Odisseia não tinha limitação de tempo, a da tragédia “empenhava-se em não exceder o tempo de uma revolução solar” – isto é, 24 horas. Nesse espaço breve de tempo se contam as histórias, por exemplo, de Édipo ReiAntígona, de Sófocles, e de Medeia, de Eurípedes.

À Sombra do Vulcão (John Huston, 1984) começa no fim de 1/11/1938, em Cuernavaca, México, com um Albert Finney já calibrado em meio aos rituais e adereços atemporais do Día de Muertos. O espectador pode supor, com razão, que coisa boa não acontece entre esta e a noite seguinte

Faz sentido, sim, observar a diferença de uma narrativa feita para ser representada em um par de horas – considerando também que a dramatização dos eventos se ajustava aos meios disponíveis: um punhado de atores em um anfiteatro, cujo principal recurso adicional era o coro, que dava conta, lateralmente, dos acontecimentos prévios e posteriores àqueles encenados, com flashbacks flashforwards.

À parte as questões formais, entretanto, a razão para uma ação limitada a 24 horas talvez seja outra, mais profunda. No clássico A Ascensão do Romance (1957), o crítico literário britânico Ian Watt argumentava que a “decantada unidade de tempo” explicitada por Aristóteles equivalia na verdade a “uma negação da importância da dimensão temporal na vida humana; pois, de acordo com a concepção da realidade pelo mundo clássico – subsistindo em universos atemporais –, implica que a verdade da existência pode se revelar inteiramente no espaço de um dia como no espaço de uma vida toda.”

Taí uma citação em que vale investir um pouco de tempo.

FIM, COMEÇO, MEIO

Por oposição, nossa cultura tende a não conceber revelação nenhuma fora de uma dimensão temporal, de causa e efeito. Um dia é pouco, mas toda uma vida certamente não – ou ao menos parte dela, em enredos com “começo, meio e fim”, confortavelmente picotados em capítulos e, por isso, com relações de causalidade bastante claras. Falamos da mesma cultura que adotou o romance como instrumento privilegiado para contar histórias “fiéis à experiência humana”.

Por que essa necessidade de detalhar à exaustão acontecimentos similares à vida? A explicação mais genérica que Watt fornece deriva da necessidade de criar um gênero que refletisse uma modernidade novidadeira e aferrada ao particular. Estamos falando de trazer o tal homem comum ao centro da cena – aquele com nome, sobrenome, RG e conta bancária, tudo encaixado “numa escala temporal minuciosa”. O dedo indicador, aí, aponta para o “individualismo” moderno e sua relação direta com o advento do capitalismo e do protestantismo – um elemento sociológico, ideológico, difícil de refutar: não por acaso, Watt dá especial atenção à lógica econômica de Robinson Crusoé, de Daniel Defoe.

Na narrativa trás-pra-frente de Irreversível (Gaspar Noé, 2002) a história que começa (termina) com Monica
Bellucci no cenário radiante termina (começa) com sordidez. Não importa(m) o(s) spoiler(s): o momento
crucial está no meio – 13min violentos em plano-sequência

Nessa “visão circunstancial da vida”, o homem comum é ao mesmo tempo objeto e, como leitor, alvo. No intervalo entre o começo e o fim da trajetória de Emma Bovary (que somos nós!), queremos saber quando, onde, como, por que e com quem, em meio a dilemas morais e engenho técnico e estético. Nada muito diferente do que se espera, por exemplo, da história de Walter White, Aka Heisenberg – armazenadas, naturalmente, as devidas proporções (e em favor dos dois).

Entretanto, a narrativa de tempo dilatado do romance realista é bastante flexível – e em grande parte a qualidade literária que separa uma obra de outra se deve à capacidade de o autor variar a velocidade dos ponteiros: tempo físico, cronológico, histórico, psicológico – até imóvel ele pode ser. Sempre há o que explorar. “Algo que se mede não por minutos e horas e sim pela intensidade”, afirmou o escritor britânico E.M. Forster em Fantasia, uma das conferências de Aspectos do Romance (1927).

“De modo que”, ele prossegue, “ao nos voltarmos para o nosso passado, ele não se prolonga para trás regularmente, mas se amontoa formando alguns montículos visíveis, e quando olhamos para o futuro, ele se apresenta às vezes como uma parede, às vezes como uma nuvem, às vezes como um sol, mas nunca na forma de uma tabela cronológica.”

TEMPO VIVIDO

Já àquela altura, entretanto, nunca o presente tinha sido tão intenso quanto em Ulisses(1922), de James Joyce. São, Forster diz, “400 mil palavras em um único dia”, 16 de junho de 1904, tudo acontecendo em Dublin, na Irlanda. “Viagem do homem moderno desde a manhã até a meia-noite, desde o leito até as débeis tarefas da mediocridade, com idas a um enterro, à redação de um jornal, a uma biblioteca, a um bar, ao banheiro, a um quarto de maternidade, à praia, a um bordel, a uma lanchonete e, por fim, de volta à cama.”

Curioso notar como esse “épico de sujeira e desilusão” inspirado na Odisseia de Homero bagunça a vida dos aristotélicos, fazendo a epopeia, moderna que seja, acontecer no intervalo de “uma revolução solar”. Embaralhadas as concepções mais antigas da teoria literária em tempo de inovações narrativas abertas pela psicanálise, Joyce rompe com a “vida circunstancial”, acha o universal em um vulgar dublinense e trabalha com uma dimensão temporal em que – arrisquemos – “a verdade da existência pode se revelar no espaço de um dia”, como afirmou Watt.

Mais “sinfônico que narrativo”, na definição do crítico norte-americano Edmund Wilson, Ulisses sustenta a linhagem realista do romance, mas fazendo-a transbordar de “tempo vivido”, subjetivo, psicológico. Com viés apontado para o universal, carrega ainda, para Benedito Nunes, a força do “tempo do mito”, atemporal. “Somos contemporâneos da idade de nossos mitos, como [Leopold] Bloom e [Stephen] Dedalus são contemporâneos do Ulisses homérico”, escreveu em O Tempo na Narrativa (1988).

Tecnicamente, essa liberdade em relação ao tempo físico deriva da adoção do uso extensivo do monólogo interior, do fluxo de consciência; moralmente, em dar uma banana para os códigos burgueses ainda vigentes. Em ambos os casos, Freud está na área – e não se pode esquecer o quanto o inventor da psicanálise também tinha apreço à universalidade dos mitos gregos.

Em Magnolia (Paul Thomas Anderson, 1999), o último dia de vida de Jason Robards é precedido de uma pequena “mitologia do acaso”: uma série de outros dias sem nenhuma conexão histórica entre eles, bizarros na ausência de causalidade nos eventos e com desfechos dramáticos

Mrs Dalloway (1925), de Virginia Woolf, também se utiliza do fluxo de consciência para confrontar a eternidade na narrativa de um único dia. Em outro junho, este de 1923, a socialite londrina Clarissa Dalloway se ocupa de preparar um jantar que reunirá personagens de dramas que se entrecruzam ao longo das horas que antecedem a festa. Aqui, quem faz as vezes de Dedalus de Ulisses, ou do Telêmaco da Odisseia, é o neurótico veterano de guerra Septimus Warren Smith.

Ulisses também ecoa em Sábado (2006), romance em que Ian McEwan se detém na trajetória do neurocirurgião Henry Perowne em 15 de fevereiro de 2003, até a volta para a cama com a “sua Molly Bloom”. É o dia de uma grande manifestação em Londres contra a iminente Guerra do Iraque após os atentados de 11/9 – outro dia de um outro século, com o fluxo de consciência de Joyce confrontado com a anatomia crua dos cérebros com que Perowne lida em seu ofício.

No romance, a lista de tramas 24h não é longa. Fazem parte dela obras como A Morte de Virgílio (1945), de Hermann Broch; À Sombra do Vulcão (1947), de Malcolm Lowry; Cosmopolis (2003), de Don DeLillo; Após o Anoitecer (2004), de Haruki Murakami; O Fotógrafo (2004), Um Erro Emocional (2010) e O Professor (2014), de Cristovão Tezza. Nas artes da representação – que é onde essa história de 24 horas afinal começou – a lista é bem maior: além do teatro, o cinema tem bons truques para dar intensidade a um único dia, como mostram os quatro exemplos ao longo deste texto.

SLOW FOOD, FAST FOOD

Há, ainda, outro aspecto a destacar nas narrativas que seguram os ponteiros do relógio em meio à profusão de memórias e sensações: a velocidade. Autor do acima citado A Morte de Virgílio – romance dedicado às últimas 18 horas da vida do autor da Eneida–, Hermann Broch fez outro cálculo para Ulisses: “Dezesseis horas da vida descritas em 1200 páginas equivalem a 75 páginas por hora, quer dizer, mais de uma página por minuto, ou seja, uma linha por segundo, aproximadamente.”

Lento na cronologia, Ulisses segue à frente da capacidade do leitor em acompanhar seus personagens não apenas no tempo subjetivo, mas também no real. O resultado dessa prosa “densa”, intercambiando velocidades em sua sintaxe, é uma igual necessidade de um ritmo mais compassado da leitura, ao contrário das narrativas mais tradicionais.

E nem precisamos nos limitar a histórias comprimidas em um dia: basta lembrar de No Caminho de Swann (1913), de Marcel Proust, cujo início aturdiu o sr. Alfred Humblot, o infeliz editor que rejeitou publicar o primeiro dos sete volumes de Em Busca do Tempo Perdido. “Posso até ser meio estúpido, mas não entra na minha cabeça que um senhor possa gastar 30 páginas para descrever como se vira e revira na cama até pegar no sono”, escreveu.

Há quem defenda que a literatura deva retomar a experiência de leitura similar – lenta –, como contraponto aos nossos tempos ansiosos, telegráficos, imediatistas. Mais ou menos como o slow food em relação ao fast. A ideia tem sua nobreza, mas a batalha estaria, convenhamos, perdida de saída. Talvez a grande questão e desafio deste momento seja encontrar uma narrativa que não se faça de avestruz diante da velocidade do mundo em que nos metemos, sem que dela, no entanto, nos tornemos reféns.

Em uma das conferências reunidas no inacabado Seis Propostas para o Próximo Milênio (1985), Italo Calvino elenca a “rapidez” como um valor literário a ser preservado, em boa parte pela identificação de sua obra com o enredo econômico das fábulas – mas nem por isso nega as virtudes de Proust. Em resposta-homenagem ao conterrâneo, Umberto Eco dedicou outra conferência aos prazeres da delonga, mas sem desprezar a concisão das histórias de, por exemplo, Jorge Luis Borges – muito ao contrário, como se sabe. São duas vias em meio ao nosso mundo congestionado.

O LEITOR ENGANADO

Abrir caminhos em vez de interditá-los não é tão simples como possa parecer: imaginação não é uma coisa corriqueira numa época em que algoritmos prometem o conforto de entregar apenas o que queremos – algoritmos que, aliás, já são largamente usados no cinema e na TV para calcular a relação “bom andamento”/“boa audiência” das tramas. Mas é isso mesmo que queremos?

Para desespero de Bill Murray, um Dia da Marmota (2/2) se repete indefinidamente na caipira Punxsutawney, em Feitiço do Tempo (Harold Ramis, 1993). Vez ou outra ele se dá bem usando os mesmos eventos para produzir narrativas distintas – e sem sofrer as consequências

Ainda antes de Sábado, Ian McEwan deu uma mostra contundente de um vigor narrativo em meio ao enredo de um mundo pronto a abolir surpresas. “Romance sobre o romance”, Reparação (2001) se divide em três partes: a primeira dedica 200 páginas narrando os acontecimentos de um único dia de verão de 1935 numa casa de campo na Inglaterra. Dia em que Briony, leitora de romances açucarados e “uma dessas crianças possuídas pelo desejo de que o mundo seja exatamente como elas querem”, destrói com sua imaginação fantasiosa a vida da irmã mais velha, Cecilia, e a do filho da arrumadeira, Robbie.

Na dosagem do tempo, McEwan recorre principalmente a contar e recontar uma série de cenas apresentando os pontos de vista de cada um dos personagens. Nas segunda e terceira partes, Reparação se transforma: são outras 200 páginas, desta vez gastos com os longos anos da Segunda Guerra Mundial, sob a perspectiva de um único narrador.

A tentativa da reparação literária de um erro engendrado pela imaginação – que justifica o título do romance – acaba sendo demonstrada nesse próprio contraste. E mais não é possível dizer: para saber como se dá esse jogo habilidoso, só com a leitura. Por ora, basta ressaltar como a forma de narrar altera toda a perspectiva do leitor, que, muitas vezes, não percebe que a literatura é um instrumento feito também para ludibriá-lo, e de muitas formas. Coisa que McEwan, “didático” e virtuose ao mesmo tempo, adora fazer.

Quem se distrai, nem se dá conta que ouvir histórias sempre foi isso: aceitar ser enganado pela mão de um ilusionista – alguém que nos convence que aquela sucessão de eventos reproduz de alguma forma a ideia do mundo como o concebemos, seja lá qual for. Se nos acostumamos àquela que se ocupa calculando as circunstâncias da vida, não há motivo para não sonhar com alguma que ambicione a eternidade, mesmo que num breve lapso de tempo.

Bravo!, agosto de 2017
© Almir de Freitas