Ela, uma distopia romântica

Próximo da vida pequena, triste e banal, o filme de Spike Jonze mostrou um caminho diferente para a ficção especulativa

Num futuro não muito distante, Theodore se apaixona pelo seu novo sistema operacional, o OS1. Dotada de inteligência artificial, é uma espécie de versão dos sonhos de Siri – a começar pela voz, de Scarlet Johansson. Numa história como essa, naturalmente, são inevitáveis os transtornos que a sociedade de Nós se orgulhava de manter à distância.

Depois de saber que Samantha andava de papo com o software que emula um físico brilhante, Theodore descobre que tem outros rivais

Com a notável exceção de Admirável Mundo Novo, não faltam exemplos de sociedades distópicas em que o amor e o sexo são controlados ou totalmente proibidos. No pioneiro Nós (1924), do russo Yevgeny Zamyatin, existe o sistema de “Dias Sexuais”, em que encontros fortuitos, calculados cientificamente, evitam os transtornos que os relacionamentos amorosos (bem sabemos) podem causar.

Em 1984, existe a Liga Juvenil Anti-Sexo e a ideia disseminada no Partido de que o amor genuíno é uma ameaça política. E em THX 1138 (1971), primeiro filme de George Lucas, há a virtual castração química em um mundo sonâmbulo nos subterrâneos da Terra.

O que talvez ninguém esperava, depois de toda essa tradição, era algo como o tom delicado de Ela (2013), filme de Spike Jonze que apresenta uma, por assim dizer, “distopia romântica”, destituída de significações políticas, mais semelhante que nunca ao dia-a-dia. Sinal de que os novos tempos podem reservar outros tipos de ficções especulativas.

Mas Ela não se limita a apontar o dedo, moralista e judicioso, para a relação obsessiva que mantemos com o mundo virtual. A fábula de Jonze pertence a uma linhagem diferente, um pouco mais passadista e, em muitos aspectos, mais abrangente: a crônica dos nossos dias, com o que eles podem ter de belo e triste em uma solidão que, no fim das contas, precede toda a tecnologia.

São dias, por exemplo, em que as timelines trazem notícias dos otaku, nerds de Tóquio que trocaram mulheres reais pelo game Love Plus, desenvolvido para Nintendo DS e iPhone. No “simulador de romance”, que já vendeu mais de 500 mil cópias desde seu lançamento, em 2011, pode-se escolher uma namorada entre três garotas virtuais. Elas podem “beijar”, “segurar a mão” e conversar, por exemplo, no caminho de volta da escola. Há, também, versões para o público feminino.

“Esses jogos são estruturados para oferecer uma experiência semelhante à leitura de um romance do século 19, mas com o usuário desempenhando um papel na história”, observou em entrevista à Time o fotógrafo suíço Loulou d’Aki, que foi ao Japão registrar o mundo desses jogadores. Uma das imagens mostras um deles, de 48 anos, segurando uma foto sua com Manaka, uma das garotas, num “passeio” no balneário de Atami.

Love Plus segue sendo um produto restrito ao Japão. Mas, mais ou menos na mesma época de seu lançamento, a coreana Nabix desenvolveu o Honey, It’s Me!, aplicativo em que uma “namorada” liga algumas vezes ao dia ao dono do smartphone, para dar bom dia ou desejar bons sonhos. Já na China, o site de e-commerce TaoBao presta serviço semelhante, o Untouchable Lover, em que as ligações e mensagens carinhosas saem por pouco mais de US$ 3 ao dia.

Em cenários assim tristes e melancólicos, não deixa de ser uma sorte termos aprendido a desafiar com bom humor nossos “transtornos” afetivos. É uma das vantagens das narrativas das crônicas de costumes.

Expert na área, autor de livros como Modos de macho & Modinhas de Fêmea, o jornalista Xico Sá dá sua opinião sobre Ela: “Amei o filme como amante da ficção amorosa/científica, mas esse negócio de amar um sistema operacional não faz sentido. O amor exige carne e alma. A gente carece encher a mão na pegada e dizer gostosa!”

Bravo!, setembro de 2016
© Almir de Freitas