Centralidade perdida

Alcir Pécora afirma que a autoridade do crítico começa a decair nos anos 60, com o debate culturalista e identitário que colocou em xeque a ideia do cânone e do valor estético

Foto: Shigueo Murakami

Crítico literário e professor titular de literatura na Unicamp, Alcir Pécora diz que a origem da crise da crítica diz respeito à própria crise da literatura como ela era vista no século 19. “Mais do qualquer outra área de conhecimento, da literatura esperava-se um ‘instinto de nacionalidade’, que pudesse produzir um sentimento de pertencimento entre as pessoas de uma nação”, diz, apontando o impacto da globalização e o consequente declínio dos Estados nacionais. Com os estudos culturais nascidos nos movimentos das minorias nos anos 60, veio o golpe mortal na ideia do cânone. “Perdeu-se aí a ideia de que a literatura constitui a o corpo central de um edifício racional, democrático”. Um dos resultados, que ele destaca na entrevista que segue, é a “subjetivação extraordinária do processo histórico”, numa “sobrevalorização do efêmero que nos leva a guardar, museificar, nossa experiência” – algo fartamente ilustrado pelas redes sociais.

A internet, que abriu canais de informação e opinião quase irrestritos, colocou em xeque a “autoridade” do crítico, que tinha grande poder na avaliação de uma obra?

Não acho que foi a internet que colocou em xeque a autoridade do crítico, embora essa falta de autoridade esteja bem visível nela. O que a provocou, antes de mais nada, ao menos em termos de literatura, foi o colapso da ideia de obra e de valor estético, que veio sendo produzida desde os anos 60, por vários fatores, mas particularmente pelo debate culturalista e identitário.

Que debate é esse?

São os abordados pelos estudos culturais nascidos dos movimentos civis das minorias, especialmente nos Estados Unidos, que atingiram em cheio a ideia do “cânone”. O que se revelou, então, é que não havia uma lei natural inscrita no campo da literatura, mas uma política de hierarquias culturais. A discussão começou com os negros, passou para as mulheres, latinos e LGBTs, todos excluídos do cânone. Perdeu-se aí a ideia de que a literatura constitui a o corpo central de um edifício racional, democrático. E, em geral, a crítica que ignora o debate político do cânone apega-se a uma ideia historicamente vencida de crítica de valor universal.

Essas transformações mudam a própria literatura?

Mudam, mas o que está em jogo na crise do contemporâneo é mais do que apenas mudar a maneira de fazer ou a apreciação particular da literatura. É saber se alguma vez a literatura vai recuperar a centralidade perdida, por razões de ordem mais ampla do que a internet.

Quando ela foi central, e como isso perdeu?

Essa centralidade data do século 19, e está muito ligada à ideia da literatura como reforço do sentimento de ligação entre as pessoas que participavam do novo Estado-nação. Mais do qualquer outra área de conhecimento, da literatura esperava-se um “instinto de nacionalidade”, que pudesse produzir um sentimento de pertencimento entre as pessoas de uma nação. Essa é uma concepção que foi por terra com a globalização, com a crise da questão nacional. Também pesaram as novas discussões sobre a linguagem, que deixou de ser vista como representação – seja das forças históricas, seja o que vai na constituição subjetiva das pessoas. Passou a ser tomada apenas como convenção, com andamento próprio e regulação interna. Esse tipo de crítica da representação evoluiu na direção do que vai ser chamado de “crítica dos paradigmas”, quando os grandes modelos de observação e interpretação do real entram em crise.

Qual o impacto dessa crise na literatura contemporânea?

Antes pensava-se e vivia-se a história como uma ideia objetiva, manifesta em acontecimentos objetivos. Hoje, a desconfiança em relação à parcialidade do narrador leva a histórias pautadas por uma memória fragmentada e subjetiva, como se nos dispuséssemos apenas a acreditar em experiências ou lembranças pessoais. Houve uma subjetivação extraordinária do processo histórico. Isso leva a um certo “presentismo”, pois se concebe o passado não como uma ocorrência dotada de factualidade, mas como internalização subjetiva no presente. Isso se traduz em sobrevalorização do efêmero – o que nos leva a guardar, museificar, nossa experiência. A publicidade imediatista nas redes sociais ilustra bem esse fenômeno. Tudo parece imediatamente compartilhável. Não é literatura, evidentemente, mas dá a falsa impressão de que a literatura não vale mais do que isso. Diante desse objetivo de expansão subjetiva, que sentido tem um crítico se apresentar diante dos amigos e dizer que aquele texto não vale nada literariamente? 

A possibilidade de uma obra de arte ser avaliada e discutida publicamente hoje por um número muito maior de pessoas é um ganho? Ou efeitos negativos da rede anulam as vantagens?

Obras de arte são difíceis, e pouco partilháveis por natureza, ao menos enquanto objetos que necessariamente introduzem o novo. Todo novo é, por assim dizer, selvagem e de difícil assimilação, ao menos enquanto continua novo, e a obra de arte tem justamente um tempo de longa duração em relação a isso. Ou seja, a internet, pensada como veículo massivo, tem pouco a revelar a respeito de obras radicais, ou, de outra forma, tem pouca vantagem a oferecer em termos interpretativos. Ela parece ter mais contribuição em termos de difusão de opinião, de ilustração de lugares conhecidos, que de penetração analítica e perspicácia intelectual.  

Dá para comparar, com certa dose de romantismo, a liberdade da internet com a “geração mimeógrafo”, que divulgava obras produzidas por pessoas que estavam fora do radar da grande mídia?

Acho que não. O que menos importava na “geração mimeógrafo” era estar fora da mídia. A questão era estar dentro de um movimento muito vigoroso, que podemos chamar de modo banal de contracultura internacional. Não havendo esse “dentro”, não resta muito apenas por estar “fora”.

O que você pensa dos booktubers?

Para ser honesto, não posso opinar, pois nunca vi, e tenho apenas uma ideia abstrata do que você está dizendo. Mas, respondendo em termos abstratos, acho bom que haja quem discuta literatura de forma animada e inteligente, seja em qual meio for. Por que não na internet?  

E quais ferramentas da internet podem ser usadas a favor da manutenção da crítica avalizada, de qualidade?

Como na pergunta anterior, não posso responder de maneira objetiva. Minha imaginação da internet é muito precária comparada à de qualquer criança (minha filha de 10 anos, por exemplo, a compreende de forma mais rica do que eu). De qualquer maneira, o que realmente importa para qualquer crítica é o esforço de interpretação de uma obra, de uma forma capaz de abrigar o novo. Para fazer algo assim basta inteligência, estudo e honestidade. Se a internet suporta essas três condições, ela pode ser interessante para a crítica.  

A mediação cultural, feita por críticos e veículos especializados, está com os dias contados?

Como sabe, trabalho na Universidade e, portanto, num universo de reflexão bastante especializado e vinculado à ciência e ao ensino, e não diretamente à indústria cultural. Como simples opinião, diria que onde haja cultivo, gosto, erudição envolvendo a produção de obras culturais há também lugar para discursos especializados, ou mais ou menos sofisticados. No Brasil, isso sempre foi um lugar rarefeito e mais um projeto do que uma realidade envolvendo circuitos culturais estáveis e complexos. De qualquer maneira, até onde percebo, já pela sua pergunta, pela existência da sua revista e de outras, mesmo que existindo numa situação complicada ou restrita, não há porque decretarmos o fim de nada.

Bravo!, maio de 2018
© Almir de Freitas