Raízes do Brasil

“O Estado não é uma ampliação do círculo familiar e, ainda menos, uma integração de certos agrupamentos, de certas vontades particularistas, de que a família é o melhor exemplo”

Apenas três anos depois de Gilberto Freyre praticamente ter inaugurado as ciências sociais no Brasil, com o exaustivo e detalhista Casa-Grande & Senzala, Sérgio Buarque de Holanda publicava um pequeno e conciso ensaio que se tornaria tão revolucionário quanto o seu predecessor. Raízes do Brasil (1936) trazia então para o estudo da formação a identidade e do imaginário dos brasileiros as referências de Max Weber – fundamentalmente a noção do “patrimonialismo”, sobre o qual se funda nossa formação política – e, de quebra, abria caminho para a nova historiografia francesa, de matriz fortemente etnológica, representada naquelas primeiras décadas do século 20 por Fernand Braudel e Lucien Febvre.

Não obstante a grandeza que significaram para a compreensão do país, os dois livros, nas suas diferenças, tiveram em comum o fato de serem vítimas dos mais diversos preconceitos, perpetrados, como sempre, por aqueles pensadores que, supostamente contestadores, não conseguem fazer outra coisa além de promover a desinteligência. Se a análise do patriarcalismo de Freyre pagou na moeda ideológica do marxismo que logo dominaria as ciências humanas, Raízes do Brasil teve de enfrentar uma celeuma em torno de sua terminologia, que, acredite-se ou não, segue incompreendida.

O núcleo da confusão é a famosa expressão “homem cordial”, que definiria o caráter brasileiro, a partir das origens culturais ibéricas, católicas, e do próprio processo de colonização portuguesa. Até hoje, há gente que não entende – o que em parte é inexplicável em razão da extrema clareza do capítulo que trata do assunto. A não ser, é claro, que se esteja falando daquela outra espécie, não tão rara, que não leu o livro, toma a expressão ao pé da letra e imagina, equivocadamente, o resto. Mas nem todos são assim.

Quem primeiro implicou com a expressão (tomada emprestada do escritor Ribeiro Couto) foi Cassiano Ricardo. Apegando-se à significação moral que a expressão sugeria, contestou a noção de que o brasileiro seria um “homem bom”. É certo que Sérgio Buarque fala da nossa “lhaneza do trato, hospitalidade e generosidade”, mas isso apenas para identificar o traço cultural de um povo acostumado às relações pessoais. O mais importante dessa análise, contudo, é o seu contraponto. É essa vocação que explicaria o brasileiro como um ser político incapaz de romper o círculo das relações familiares – vale dizer, de diferenciar o público do privado, de lidar com as instituições e com o Estado, impessoais demais para o nosso “jeito”.

Nada “bom”, como se vê. São essas raízes que explicariam práticas políticas viciosas, pouco afeitas à democracia moderna. Nelas, prevalecem os interesses particulares, incompatíveis com a ordenação social e políticas mais neutras – ou “burocráticas”, para manter a oposição weberiana ao patrimonialismo. Isso vale tanto para o coronelismo que ainda resiste no Brasil, malgrado o crescimento das cidades e a industrialização, quanto para aqueles que se vendem como inovadores e reformadores do Estado, mas que não dispensam a aliança com os… patrimonialistas.

Primeira Leitura, dezembro de 2003
© Almir de Freitas