Ilíada

“Canta-me a cólera – ó deusa! – funesta de Aquiles Pelida,/ causa que foi de os Aquivos sofrerem trabalho sem conta/ e de que baixassem para o Hades as almas de heróis numerosos”

No início do romance A Marca Humana, de Philip Roth, o personagem Coleman Silk (que passou a ter a cara de Anthony Hopkins no filme Revelações) apresenta uma tese heterodoxa a seus alunos da Faculdade Athena, localizada na cidadezinha norte-americana de Ithaca. O velho professor, já adentrado na casa dos 70 – e que acabaria vítima da imbecilidade politicamente correta do fim dos anos 90 –, ensina que a literatura europeia havia nascido de uma briga de dois homens por uma mulher. Referia-se ao épico Ilíada, de Homero. Briseida era o nome da moça, um despojo de guerra disputado por Agamenon, rei dos aqueus, e Aquiles, o guerreiro invencível (a não ser pelo famoso calcanhar), que passará, para o grande público, a ter a cara de Brad Pitt, com a estreia do filme Troia.

Teses atrevidas são sempre atraentes, especialmente quando revelam miudezas humanas em meio a confrontos monumentais. O fato é que a Ilíada é dedicada, em grande parte de seus 14 mil versos, à cólera de Aquiles contra seu rei, que lhe tomou Briseida. Ocorre que Agamenon precisa desesperadamente do súdito para vencer os troianos numa guerra, de resto, iniciada por causa de outra mulher, Helena. Os dois homens valorosos do épico de Homero parecem, às vezes, não mais do que dois turrões, cegos em seu rancor e em sua disputa privada.

Estima-se que Homero tenha vivido por volta do século 9 a.C., mas a sua existência e a autoria (no sentido que temos hoje) da Ilíada e da Odisseia são tão duvidosas quanto a própria Guerra de Troia, no século 13 a.C. As escavações feitas na colina de Hissarlik, na Turquia, onde teria ficado a cidade, nunca foram conclusivas.

Pouco importa. Por trás da lenda, é certo que tenha existido algo. A “verdade” não é o que conta. Muito além da história do cerco a uma cidade por dez anos, estão os valores de uma civilização. Nesse sentido, é mais significativo o fato de que os relatos da Ilíada tenham sido transmitidos oralmente pelos aedos. No conjunto, eles nos dão notícia de um mundo perdido, em que a rinha amorosa, aquela do professor, era veículo de uma cultura, de um ordenamento do mundo, que se estendia além das questões privadas.

Muito já se falou da tragédia do homem moderno. É verdade que o mundo hoje é muito menos cruel do que aquele descrito na Ilíada – basta lembrar da fúria de Aquiles ao arrastar o corpo do troiano Heitor inúmeras vezes ao redor dos muros de Tróia. Mas, se voltamos ao velho Coleman, que teve a vida destruída por se referir a dois alunos negros, que nunca apareciam nas aulas, como “spooks” (“fantasmas”, literalmente, mas também – uma forma pejorativa, em desuso, de designar os negros) ou por namorar uma faxineira 40 anos mais moça, temos a dimensão do amesquinhamento dos confrontos agônicos.

Para Homero e para os gregos, os conflitos individuais eram como que pretextos para o exercício da lealdade, da honra e da coragem, ainda que, aparentemente, se pudesse pôr em risco cidades inteiras por causa de um rabo-de-saia, conforme apontou Silk. Já a tragédia do velho professor é a nossa: a banalidade pode destruir a vida de um homem, e a ética que o condena não é um valor que pode ser generalizado, mas um particularismo que se torna influente.

Primeira Leitura, maio de 2004
© Almir de Freitas