Ouro em chumbo

Longe de ser um documentário, Motoboys – Vida Loca acaba sendo apenas uma reportagem mal-resolvida sobre um grande assunto

Há muitas coisas que distinguem um documentário de uma mera reportagem. Nem se pode dizer, repetindo o habitual clichê, que há uma-linha-tênue-separando-os-dois-gêneros. Algumas vezes, seus próprios realizadores erguem uma parede entre um e outro, optando por ficar do lado em que se faz apenas o registro do cotidiano, sem qualquer transcendência da realidade. Em Motoboys – Vida Loca, de Caíto Ortiz, isso se evidencia de forma perversa, uma vez que seu tema, fabuloso, acaba desperdiçado. Tratava-se, aqui, de retratar a vida e a rotina desses garotos que atendem à pressa do mercado em São Paulo, combinada com as suas necessidades materiais e sonhos pessoais, e que, de quebra, dividem o mesmo espaço público com quem lhes devota pouca afeição, mas que deles dependem para sua sobrevivência no âmbito privado. É ouro puro, transformado em chumbo.

E o que dá mais aflição é que nem como reportagem Motoboys se resolve. Em boa parte, isso ocorre por causa de uma certa afobação denuncista do diretor-repórter, que ensaia focar seu filme na questão da segurança dos motoboys – o que é válido na mesma medida em que é o mais chato, diante de tantas possibilidades a explorar. Condena-se, por exemplo, o veto do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso à lei que proibiria o tráfego de motos entre os carros. A complexidade da discussão aqui é zero. Não se pergunta o que fariam da vida os cerca de 350 mil motoboys que rodam a cidade se a lei fosse aplicada. É certo que o mercado, esse vilão plutocrata de cartola e charuto, dispensaria esse contingente se eles fossem obrigados a seguir o fluxo dos carros.

O que o filme esquece em horas como essas é a definição de seu próprio objeto: motoboys só existem porque existe pressa. Num ou noutro depoimento menos ingênuo, essa questão fica evidente, mas Caíto Ortiz deixa passar. Sem o udenismo da CET (Companhia de Engenharia de Tráfego), Washington Olivetto vai ao ponto: quantos negócios já não foram realizados porque um garoto costurou o trânsito e entregou um documento em tempo? O mesmo vale para nós, aqueles que são obrigados a conviver com o bi-bi de suas buzinas zunindo no meio do trânsito, arriscados que estamos a perder o espelho retrovisor. Não gostamos, reclamamos, mas queremos também que nossas encomendas cheguem rápido e que nossas pizzas cheguem quentes. Nós somos os que têm pressa, nós somos o contraditório da segurança que Ortiz prega, ignorando, justamente, o que há de contraditório em tudo: no que queremos, na lei, no mercado, no modo como escolhemos ou como somos obrigados a viver.

Com uma ou outra história pessoal diluída no meio de tanta boa intenção, há mais perdas. Em outro impulso denuncista, o cineasta acusa a burocracia que emperra um projeto que cria corredores especiais para os motoboys. Aqui, comete um grande erro: afasta-se deliberadamente daquela transcendência, tornando-se refém de um fato isolado, efêmero. Critica, com o indefectível A entrevista ainda não foi concedida, a prefeita Marta Suplicy por não ter se pronunciado sobre o assunto. Por razões óbvias, a sequência poderia perder o sentido amanhã – bastava a prefeita ter tempo e disposição de aporrinhar um cineasta.

Longe de ser documentário, Motoboys – Vida Loca fica mesmo no lado da reportagem mal pautada, com lacunas e trechos sem lá muito propósito. É matéria datada e transitória. E sem edição no dia seguinte.

BRAVO!, julho de 2004
© Almir de Freitas